O livro da decadência brasileira terá muitos capítulos escritos por Jair Bolsonaro. A epígrafe, breve citação que antecede a obra, poderia ser o Exame Nacional do Ensino Médio de 2021. Os impactos da transformação do exame em elitista, racista e excludente para o desenvolvimento brasileiro podem ser sentidos antes da correção das primeiras provas.

O que acontece hoje com o acesso ao ensino superior nega todo seu processo de construção.

O Enem foi criado em 1998 e logo ganhou a alcunha de "Provão", porque existia apenas para avaliar a qualidade do ensino médio no governo de Fernando Henrique Cardoso, com intuito de fornecer dados para políticas públicas e educacionais. O método foi bastante questionado à época pelas entidades estudantis. Foi no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que o exame passou a ser acesso ao ensino superior, primeiro em universidades particulares com a criação do Programa Universidade para Todos (Prouni), em 2004, e posteriormente também em instituições públicas por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) em 2010.

Foram alguns anos e muitas mãos para o Brasil criar e consolidar o segundo maior exame de acesso ao ensino superior do mundo, atrás apenas do chinês. Alterou a prática anterior de acesso ao estado da federação, quando o estudante precisa gastar dinheiro para se deslocar, muitas vezes com exames em datas coincidentes nas várias cidades, para tentar uma vaga em algum lugar do Brasil e com avaliações diferentes para o mesmo curso. A unificação promoveu equidade. Somado às políticas afirmativas das cotas, vimos mudar o perfil social das universidades brasileiras.

No ano de 2021, o número de inscritos teve queda recorde. Os inscritos em 2021, pouco acima de quatro milhões de estudantes, têm relação direta com o desconhecimento ou desprezo pela realidade do nosso povo, característica do governo atual e da gestão do MEC.

Mas a queda brusca das inscrições não é fato para ser analisado o cenário econômico. O primeiro revés se deu com o enfraquecimento de um programa de financiamento estudantil que tinha como critério a inscrição e nota mínima na prova do Enem. O Fies, que garantia a possibilidade de ingresso em faculdades particulares aos jovens egressos de escolas públicas e com menos chances de competir com os alunos de escolas privadas que podiam arcar com caros cursos pré-vestibulares, foi sendo asfixiado e os péssima condução de nossa economia acabou afastando um público de receoso de entrar numa dívida num contexto de desemprego, galopante e falta de perspectiva de honrar a dívida.

O segundo revés, também fortemente vinculado ao caos econômico, é que o número de estudantes em condições de pagar a taxa de inscrição caiu assustadoramente. Sem falar no desânimo de muitos que, após mais de 1 ano de ensino virtual sem qualquer estrutura, se viram incapazes de competir com quem teve acesso à internet, computadores e aulas e acompanhamentos diários.

A queda brusca de inscritos é também consequência direta da gestão do Ministério da Educação. Num ano absolutamente atípico para a comunidade escolar, com pandemia, o ministro Milton Ribeiro tentou impedir que os estudantes ausentes no exame do ano anterior obtivessem isenção de taxa neste ano. A ação inconstitucional foi barrada pelo STF, mas foi uma das causas da baixa adesão. Após a decisão da Corte, a reforma aumentou em 9%, chegando a 4.004.764 de inscritos. Quem ouviu o ministro dizendo que crianças com deficiências atrapalham a educação entende que a exclusão é um projeto do governo Bolsonaro para a educação. Um governo que acha que educação superior é para poucos. Um governo que acha que universidade pública tem que acabar.

O período pandêmico exigiu fechamento das escolas e foi grande a exclusão digital nas camadas populares, sem que o Estado brasileiro dessas respostas. Em número grande de cidades, não houve cobertura para o ensino remoto. A macroeconômica e econômica foi de retração e contenção de gastos, levando à orfandade a população mais vulnerável. Cresceu o desemprego e a fome. Não foi surpresa o comportamento do governo diante do Enem.

Para piorar o que já estava ruim, dias antes do exame, 37 servidores públicos pediram exoneração coletiva do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pela realização do Enem, por assédio moral e fragilidade técnica e administrativa. Uma das denúncias foi sobre interferências nos conteúdos das provas como a proibição do uso do termo “ditadura militar”. Em matéria do jornal O Estado de São Paulo, os servidores denunciaram que pessoas externas ao Inep iriam interferir no conteúdo da prova, alterando conteúdos, suprimindo o que chamam de “itens sensíveis”, já caracterizando interferência e alto risco de desequilíbrio nos níveis de dificuldade, um dos critérios importantes da avaliação do candidato.

Como resposta, Bolsonaro disse que “o exame ia começar a ter a cara do governo”. Depois deu um passo atrás e o ministro negou qualquer interferência quando “apareceu” no Congresso Nacional. Os dois se uniram em coro ao presidente do Inep, Danilo Dupas, pra dizer que não tinha visto a prova.

Apoiei na tribuna da Câmara dos Deputados que façamos a diligência no Inep, proposta pela deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), e que fosse iniciada uma investigação profunda. O risco de fraude num exame nacional, milhões de jovens, seus esforços e sonhos é uma violação à democracia e de direitos fundamentais de acesso à educação. É mais do que direitos individuais. Estamos falando de uma política transformadora, inclusiva, base de uma nação desenvolvida. Já não basta o ataque deste governo ao patrono da educação brasileira, Paulo Freire, o apagão orçamentário das universidades, da ciência e da cultura, ainda temos que encarar denúncias oriundas do Inep às vésperas do Enem e o menor número de inscritos da história.

A epígrafe do livro está sendo escrita cabe a todos nós escrevermos o final. A prova do Enem de 2021 deve ser uma eterna lembrança de que não podemos ser alimentados pela desinformação e pela intolerância em constante espera pelo abate. Que não somos marcados para morrer. Somos marcados para lutar e para viver num país onde a educação de qualidade é direito de todos.

* Jandira Feghali é médica, deputada federal pelo PCdoB-RJ e vice-líder da Minoria na Câmara dos Deputados. Artigo publicado originalmente na Carta Capital